O ANJO DA HISTÓRIA E A PEDRA DE EXU (PARA LER OUVINDO MANGUEIRA / 2019)
É bastante conhecida a interpretação que Walter Benjamin faz, nas Teses sobre o conceito de História, da imagem do Angelus Novus, de Paul Klee. Não custa relembrar o belo trecho:
Há um quadro de Klee que se chama Angelus
Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara
fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas.
O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o
passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe
única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos
pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos.
Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força
que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente
para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas
cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso.
Na
percepção de Benjamin, o passado não é um dado imutável e o futuro não é inexorável.
A construção do futuro passa, necessariamente, pela reconstrução do passado e
das suas lutas, e o compromisso ético do historiador não se estabelece apenas
com os vivos e com os que ainda virão, mas também com os mortos. A escrita da
História não é neutra; ela pressupõe embates, e o “progresso” não pode ser
considerado uma norma, sob pena de calarmos diante das catástrofes e
silenciamentos que, em nome dele, foram praticados. Foi dessa crença inabalável
no progresso, que justificou todo um espólio de horrores, que o fascismo se
alimentou.
Escovar a História a contrapelo é voltar ao
passado para recuperar as lutas populares e seus personagens – aniquilados pelo
peso do horror dominante – e redimensiona-las como centelhas de esperança, a
expressão é de Benjamin, capazes de estimular nossas lutas e compromissos com
uma sociedade mais justa. Como alerta Benjamin, a vitória dos inimigos não se
estabelece apenas sobre os vivos, mas também sobre os mortos de incontáveis
gerações.
A
percepção de Benjamin sobre a necessidade de disputar o passado para acender a
chama do presente e pavimentar futuros cruza com um dos orikis mais famosos de
Exu – o orixá do movimento, do poder do corpo, da alegria e das grandes
transformações: Exu acerta a pedra que lança hoje no pássaro que já voou. Por
princípio, os orikis abrem múltiplas possibilidades de interpretação e operam
no campo poderoso em que a poética aconchega-se no mistério para sugerir ações
permanentes de vida.
O que
Benjamin chama de “Anjo da História”, nós podemos chamar de “Pedra de Exu”. Em
um tempo “saturado de agoras”, conforme diz François Hartog, parece que
perdemos a dimensão do compromisso com as lutas do passado. À maioria, elas
causam apenas certo alheamento enfadado e, na melhor das hipóteses,
curiosidade.
O
pássaro do passado só pode ser alcançado com a pedra que lançamos hoje; e seu
voo é incessante. Exu não vai ao ontem porque sabe que (nas espirais do tempo),
é no presente que a pedra é lançada em busca do pássaro que, em seu voo incerto,
pousará no futuro.
Para
Exu, nada é um dado imutável e o impossível é uma possibilidade; ele prende
água na peneira e guarda o mundo na quartinha; galopa em galo de rinha, avoa em
cobra rasteira; sentado, bate com a cabeça no teto do terreiro; em pé, é menor
que a chama do fogareiro.
Em
2019, a Estação Primeira de Mangueira, no enredo desenvolvido por Leandro
Vieira, assumiu o fardo e o espanto do Anjo da História lançando no pássaro/passado
do Brasil a Pedra de Exu. Chamou os Caboclos de Julho, os malês, os dragões do
mar de Aracati, os quilombolas, as Luizas Mahins, os Cariris; como a alertar
que o fazer histórico não pode ser desvencilhado da dimensão pedagógica do ensinar
a História. Os inimigos, afinal, combatem também a memória dos nossos mortos
para impedir novas vidas.
Ao falar da percepção do passado no materialismo de Benjamin, Michel Löwy diz que ele nos coloca diante da iminência de tomar decisões no presente. O historiador, afinal, vive de apanhar “centelhas de esperança” que encaminhem outros futuros, conforme o próprio Benjamin diz. Centelhas, não custa lembrar, são partículas que se desprendem de um corpo em brasa; fagulhas, faíscas, descargas elétricas que assombram a escuridão com estonteante velocidade e movimento.
Para
as culturas de terreiro, as centelhas têm nome: Exu.
Referências:
BENJAMIN,
Walter. Sobre o conceito da história. In: Magia e técnica, arte e política:
ensaio sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
HARTOG,
François. Regimes de historicidade: presentismo e experiência do tempo. Belo
Horizonte: Autêntica Editora.
LÖWY,
Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio – uma leitura das teses “sobre o
conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2005.
PRANDI,
Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
VIEIRA,
Leandro. História para ninar gente grande. Sinopse do enredo do GRES Estação
Primeira de Mangueira. Carnaval de 2019.
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