TAMBORES - BREVE INTRODUÇÃO
Os atabaques dos rituais brasileiros conversam o tempo inteiro. Cada toque guarda um determinado
discurso, passa determinada mensagem, conta alguma história. O tocador dos
tambores rituais precisa conhecer o toque adequado para cada orixá, vodum ou
inquice. Se o drama representado pela dança de um orixá se refere ao combate, o
toque é um; em geral com características marciais. Se a ideia é contar através
da dança sacra uma aventura de paz, o toque é outro. Há toques para expressar conquistas, alegrias,
tristezas, cansaço, realeza, harmonia, suavidade e conflitos.
É importante lembrar que um xirê, a festa de candomblé, é o momento em
que os orixás baixam nos corpos das iaôs para representar - através da dança,
dos trajes e emblemas - suas trajetórias míticas. Através da representação dramática, a comunidade
se recorda do mito e dele tira um determinado modelo de conduta. As danças, ao
contar histórias protagonizadas pelos orixás, servem de exemplo para os membros
do grupo. Em suma, ritualiza-se o mito em música, coreografia, crença e arte,
para que ele continue vivo para a comunidade, cumprindo assim sua função
modelar.
Apenas a título de ilustração, podemos citar alguns
toques mais famosos. Nos terreiros de Ketu, o toque característico de Ogum é o
adarrum e se caracteriza pela rapidez e pelo ritmo contínuo, capaz de evocar o
caráter marcial do orixá guerreiro e propiciar o transe. O agueré, consagrado a
Oxossi, mistura cadencia e rapidez e evoca a astúcia do caçador que conhece os
atalhos da floresta.
O ilú de Iansã (o popular “quebra-pratos”) é muito
rápido e repicado, representando a agitação da senhora dos ventos, controladora
de relâmpagos e tempestades. O alujá de Xangô é vigoroso e se caracteriza pelo
constante dobrar do rum, o maior dos tambores, como a simbolizar os trovões que
o grande orixá comanda.
Nanã, anciã de dança lenta, tem como toque marcante
o sató, que evoca o peso dos tempos e o caráter venerável da iabá mais velha. O
opanijé de Omolu é um toque quebrado por pausas e pela lentidão solene, como a
evocar os mistérios do orixá. A vamunha é uma marcha rápida, tocada geralmente
para a entrada e a saída dos iaôs e para a retirada dos orixás no final da
festa. Convida, em sua empolgação, para aclamações dos presentes.
O igbin, toque consagrado a Oxalufã, se caracteriza
pela lentidão e pelo desenvolvimento contínuo do ritmo. Evoca o lento caminhar
do caramujo que carrega sua própria casa, como Oxalufã carrega o peso do mundo.
O ijexá, preferencialmente tocado para Oxum e Logunedé, mas também para outros orixás, evoca a suavidade dos
banhos de rio e dos ritos de sedução típicos desses orixás.
Posso, inclusive, tomar o ijexá como exemplo para desenvolver algumas reflexões. A palavra origina-se do vocábulo Ijèsá, subdivisão da etinia iorubá e nome de uma cidade considerada o berço do grupo. O ijexá é tocado somente com as mãos, sem o uso dos aguidavis (as baquetas). O ritmo é suave e cadenciado e o gã (agogô) acompanha sempre os atabaques, marcando o compasso.
De ritmo dos terreiros, o ijexá chegou ao carnaval, a partir da criação dos afoxés baianos (cortejos carnavalescos de adeptos do candomblé) no final do século XIX. A expressão vem do iorubá àfose (encantação pelo som). Os cubanos usam afoché para designar o ato de enfeitiçar alguém com o pó da magia. Das ruas, tocado pelos afoxés, o ijexá chegou à música popular brasileira e é a base de canções extremamente populares, como Anunciação (Alceu Valença), Queixa (Caetano Veloso) e É d´Oxum (Gerônimo e Vevé Calazans) e o fundamento da obra de compositores importantíssimos, como Edil Pacheco. A sacralização do profano e a profanação do sagrado é, afinal, marcante característica das encruzilhadas do Brasil.
Nas casas de Angola, o repertório dos atabaques se estrutura em torno de alguns ritmos basilares, como o barravento, o cabula e o congo. Cada um apresenta variações - como a muzenza em relação ao barravento ou o congo de ouro. Os toques são mais soltos e as entidades podem ser evocadas por qualquer um dos toques básicos e suas variações. As influências rítmicas da cabula, do barravento e do congo se fazem sentir com mais evidência em uma série de ritmos da música brasileira, sobretudo vinculados ao tronco do samba e suas variações. São marcantes também na prática da capoeira e fundamentais nos terreiros de umbanda, sobretudo aqueles que bebem na fonte do omolocô, tradição que busca afirmar os fundamentos lunda-quiocos das macumbas do Brasil.
Os
atabaques, em geral, são feitos em madeira e aros de ferro que sustentam o
couro. Nos terreiros de candomblé costumamos chamar os três atabaques
utilizados de rum, rumpi e lé. O rum, o maior de todos, possui o registro
grave; o rumpi, o do meio, possui o registro médio; o lé, o menorzinho, possui
o registro agudo. Para auxiliar os tambores, utiliza-se um agogô ou gã; em
algumas casas tocam-se também cabaças e afoxés.
Não é qualquer um que pode chegar numa roda de santo e meter a mão no couro. A autorização demanda iniciação ritual, tempo, recolhimento e consagração. Nas casas de culto ketu, os tocadores de atabaque tem o título de ogãs alabês; os jejes chamam os tocadores de runtós e os seguidores dos ritos de angola denominam os músicos de xicarangomos.
A questão etimológica também é interessante. O
termo alabê vem provavelmente de alagbe – o dono da cabaça –; runtó deriva da
língua fongbé, dos vocábulos houn (tambor) e tó (pai), formando o sentido de
pai do tambor; já xicarangomo, segundo o mestre Nei Lopes, vem do quicongo
nsika (tocador) + ngoma (tambor) = o tocador de tambor.
Nas tradições
jeje e ketu, os tambores são tocados com baquetas feitas de pedaços de galhos
de goiabeira, chamadas aguidavis. O rumpi e o lé são tocados com dois
aguidavis; o rum é tocado com uma única baqueta, maior e mais grossa que as
outras. Nos candomblés de angola, os três atabaques são percutidos com as mãos,
sem o recurso de baquetas.
Os tambores, enfim, são propiciadores percussivos do canto, da dança e da rememoração de histórias modelares. Nos conduzem na dimensão do sagrado, ao tempo dos mitos primordiais de invenção da vida.
Os deuses, afinal, humanamente dançam. Os humanos, divinamente, também.
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